28 setembro, 2007

Tribunais de Contas do Brasil - Parte II

Nesta seção, trataremos de dois temas polêmicos e pouco abordados pela doutrina: a autonomia financeira e administrativa dos Tribunais de Contas e a sua capacidade de figurar ativa e passivamente na relação jurídico-processual.

3. Autonomia administrativa e financeira


Convém esclarecer que a autonomia dos Tribunais de Contas não se resume à autonomia institucional ou funcional, qual seja, a autonomia de exercício de sua atividade-fim sem subordinação, ingerência ou dependência de outras autoridades, órgãos ou poderes.

A autonomia dos Tribunais de Contas abarca, também, a autonomia administrativa e a autonomia financeira, que constituem verdadeiros pressupostos da autonomia institucional.

Segundo José Maurício Conti[1], a autonomia administrativa:

"manifesta-se pela capacidade de que é dotado o ente de se auto-organizar, ou seja, de estabelecer os órgãos, os meios e as formas pelas quais se encarregará de cumprir as tarefas que lhe foram atribuídas pela Constituição. A autonomia administrativa confere poderes ao ente para estabelecer, segundo seus próprios desígnios, a sua organização interna, observadas apenas diretrizes genéricas previstas na legislação, com órgãos e os respectivos servidores".

A autonomia administrativa dos Tribunais de Contas encontra-se prevista no art. 73, da CF/88, que faz remissão, no que couber, à autonomia administrativa do Poder Judiciário, conforme art. 96, da CF/88, verbis:

"Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;
c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;
d) propor a criação de novas varas judiciárias;
e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;
f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;
II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:
a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;
b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)
c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;
d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;
III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral".


Aplicando-se este dispositivo, no que couber, ao Tribunal de Contas da União, o art. 1°, da Lei Federal n° 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU) dispõe que:

"Art. 1° Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta lei:
(...)
X - elaborar e alterar seu regimento interno;
XI - eleger seu Presidente e seu Vice-Presidente, e dar-lhes posse;
XII - conceder licença, férias e outros afastamentos aos ministros, auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, dependendo de inspeção por junta médica a licença para tratamento de saúde por prazo superior a seis meses;
XIII - propor ao Congresso Nacional a fixação de vencimentos dos ministros, auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal;
XIV - organizar sua Secretaria, na forma estabelecida no regimento interno, e prover-lhe os cargos e empregos, observada a legislação pertinente;
XV - propor ao Congresso Nacional a criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções de quadro de pessoal de sua secretaria, bem como a fixação da respectiva remuneração;"
A autonomia financeira, grosso modo, pode ser definida como a disponibilidade de recursos financeiros e orçamentários, com vistas ao atendimento das suas necessidades, sem a dependência de terceiros.

A autonomia financeira de um órgão, entidade ou poder manifesta-se, no nosso entendimento, por meio dos seguintes aspectos:

a) existência de dotações orçamentárias próprias na lei orçamentária anual;
b) elaboração do orçamento, sem interferência de terceiros, dentro dos limites da lei de diretrizes orçamentárias;
c) execução orçamentária e financeira por meio de departamentos inseridos na sua estrutura administrativa;
d) recebimento de recursos financeiros do Tesouro, segundo parâmetros não discricionários previstos na legislação;
e) não sujeição às limitações de empenho e de movimentação financeira por outro órgão ou Poder.

No tocante ao Tribunal de Contas, a Constituição Federal não faz menção expressa à autonomia financeira tal como ocorre com o Poder Judiciário[2] (art. 99) e com o Ministério Público[3] (art. 127).

Outros dispositivos legais e constitucionais podem levar à conclusão de que o Tribunal de Contas não dispõe da mesma autonomia financeira atribuída aos demais Poderes e ao Ministério Público.
O art. 128, da CF/88, por exemplo, que trata da entrega dos recursos financeiros pelo Poder Executivo aos demais órgãos com autonomia financeira, não inclui expressamente o Tribunal de Contas, senão vejamos: "Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º. Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)".

A limitação de empenho e movimentação financeira prevista no art. 9°, da Lei Complementar n° 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) se refere aos Poderes e ao Ministério Público, sem fazer menção expressa ao Tribunal de Contas.

Apesar disso, no âmbito federal, o Tribunal de Contas da União dispõe de dotação orçamentária própria (órgão orçamentário 03000 e unidade orçamentária 03101), da mesma forma que o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Ministério Público da União. Ademais, o art. 70, IV, da Lei n° 8.443/92 dispõe que:

"Art. 70 - Compete ao Presidente do Tribunal de Contas da União:
(...)
IV - diretamente ou por delegação, movimentar as dotações e os créditos orçamentários próprios e praticar os atos de administração financeira, orçamentária e patrimonial necessários ao funcionamento do Tribunal".

Além disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal também dispõe que o Tribunal de Contas deverá expedir um Relatório de Gestão Fiscal próprio, conforme art. 20, §2°, II c/c art. 54, II, da Lei Complementar n° 101/2000.

Em suma, conforme já mencionamos, a autonomia financeira é pressuposto da autonomia institucional, sendo esta explicitamente assegurada pela Constituição Federal ao Tribunal de Contas. A ausência de menção expressa à autonomia financeira do Tribunal de Contas nos textos legais e constitucionais pode ser justificada pelo entendimento equivocado de que este integra o Poder Legislativo.

4. Personalidade Judiciária ou Capacidade Processual
O Tribunal de Contas não possui personalidade jurídica própria, atributo exclusivo dos entes federados e de suas entidades da Administração Indireta.

Todo aquele que dispõe de Personalidade Jurídica pode figurar como parte. Nada obstante, o ordenamento jurídico reconhece capacidade processual (ou personalidade judiciária) a entes despersonalizados que tenham interesses ou prerrogativas próprias a defender.

Neste sentido, Hely Lopes Meirelles[4] leciona que:

"Na ordem privada podem impetrar segurança, além das pessoas e entes personificados, as universalidades reconhecidas por lei, como o espólio, a massa falida, o condomínio de apartamentos. Isto porque a personalidade jurídica é independente da personalidade judiciária, ou seja, a capacidade para ser parte em juízo; esta é um minus em relação àquela. Toda pessoa física ou jurídica tem, necessariamente, capacidade processual, mas para postular em juízo nem sempre é exigida personalidade jurídica; basta a personalidade judiciária, isto é, a possibilidade de ser parte para defesa de direitos próprios ou coletivos.

O essencial para a impetração é que o impetrante - pessoa física ou jurídica, órgão público ou universalidade legal - tenha prerrogativa ou direito próprio ou coletivo a defender e que esse direito se apresente líquido e certo ante o ato impugnado.

Quanto aos órgãos públicos, despersonalizados mas com prerrogativas próprias (Mesas de Câmaras Legislativas, Presidências de Tribunais, Chefias de Executivo e de Ministério Público, Presidências de Comissões Autônomas etc.), a jurisprudência é uniforme no reconhecimento de sua legitimidade ativa e passiva para mandado de segurança (e não para ações comuns) restrito à atuação funcional e em defesa de suas atribuições institucionais".

A capacidade processual passiva fica evidenciada no art. 102, inciso I, alínea d, da Constituição Federal que estabelece a competência do STF para julgamento de Mandado de Segurança contra ato do Tribunal de Contas da União.

Por sua vez, a capacidade processual ativa foi implicitamente reconhecida no julgamento do Mandado de Segurança n° 24.312-1/DF, impetrado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro - TCE/RJ, em defesa de suas competências, contra a Decisão n° 101/2000 - Plenário, do Tribunal de Contas da União, a qual proclamou ser sua competência exclusiva a fiscalização da aplicação dos recursos recebidos a título de royalties do Petróleo, Xisto Betuminoso e Gás Natural, pelos Estados e Municípios.

Reforça nossa argumentação, a decisão do Supremo Tribunal Federal em questão de ordem suscitada em Mandado de Segurança n° 25.181, impetrado contra ato do TCU, que assentou a possibilidade do Consultor Jurídico do Tribunal sustentar oralmente, em nome deste, quando esteja em causa controvérsia acerca da competência do órgão.

[1] José Mauricio Conti (Cf. A Autonomia Financeira do Poder Judiciário, Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p. 65).

[2] Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.
§ 1º - Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
§ 2º - O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I - no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II - no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
§ 3º Se os órgãos referidos no § 2º não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 1º deste artigo.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 4º Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 5º Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

[3] Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 3º - O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.
§ 4º Se o Ministério Público não encaminhar a respectiva proposta orçamentária dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 3º.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 5º Se a proposta orçamentária de que trata este artigo for encaminhada em desacordo com os limites estipulados na forma do § 3º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 6º Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
[4] Cf. Mandado de Segurança, 27a. ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 23.

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